sexta-feira, 21 de agosto de 2020

As Funções de um Professor. Tradução do Prof. Me. Gilberto Cardoso.

 

As funções de um professor

Bertrand Russell

(1872-1970)

 

Nos últimos cem anos, mais do que outros, o ensino deixou de ser uma profiso de reduzidas dimensões que exigia uma elevada especializão e se dirigia apenas a uma minoria, para se transformar num vasto e importante ramo do serviço público. Trata-se de uma profissão com uma grande e honrosa tradão que se estende desde o começo da história até aos nossos dias. No entanto,  nos tempos que correm, qualquer professor que conceda ser impróprio o direito de se sentir inspirado pelos ideais dos seus predecessores, rapidamente se dará conta de que a sua função já o é ensinar aquilo que considera ser seu dever ensinar mas incutir crenças e pressupostos cuja utilidade é estabelecida por aqueles que lhe dão emprego.

Esperava-se outrora que um professor fosse alguém com conhecimento ou sabedoria excepcionais, alguém cujas palavras mereciam ser escutadas com atenção. Na Antiguidade, quando a profiso não estava ainda instituída, não era exercido nenhum controle sobre aquilo que os professores ensinavam. É verdade que com alguma frequência houve professores que foram punidos pelas suas doutrinas subversivas. Sócrates foi condenado à morte e acredita-se que Plao foi aprisionado. Mas estes incidentes não interferiram em nada na difusão das suas doutrinas. Quem possui um genuíno impulso de professore está mais interessado em sobreviver nos seus livros do que na sua carne. Por outras palavras, o sentimento de independência intelectual, é essencial ao adequado preenchimento das funções de professor. A este cabe, fundamentalmente, participar no processo de formação da opinião pública transmitindo todo o conhecimento e toda a racionalidade de que for capaz.

Na antiguidade, com exceção de uma ou outra intervenção ocasional mais ou menos abrupta e ineficaz por parte de algum tirano ou multidão, o professor exercia livremente as suas funções. Na Idade Média, o ensino tornou-se prerrogativa exclusiva da Igreja, o que teve como resultado um progresso menor, quer no plano intelectual, quer no plano social. Com o Renascimento, o respeito pelo conhecimento atribuiu novamente ao professor uma liberdade muito significativa. Sem dúvida que a Inquisição obrigou Galileu a retratar-se e condenou Giordano Bruno à fogueira. Mas o trabalho de cada um destes homens já estava feito antes de terem sido punidos. As instituições de tipo universitário permaneceram em grande medida sobalçada dos dogmáticos, o que explica que muito do melhor trabalho intelectual eno produzido tenha sido levado a cabo por homens de cultura independentes. Na Inglaterra, quase até o final do século XIX, praticamente nenhuma figura intelectual de primeiro plano, com exceção de Newton, esteve ligada à Universidade. Mas o sistema social estava de tal forma organizado que estas circunstâncias pouco ou nada interferiam nas atividades desses homens e nas aplicações do seu trabalho.

No mundo atual, altamente organizado como é deparamo-nos com um novo problema. Toda a gente recebe algo que se designa por educação, algo que, geralmente, é dado pelo Estado, algumas vezes também, pelas Igrejas existentes. Na grande maioria dos casos, o professor transforma-se então num servidor civil, obrigado a cumprir ordens de homens que não tem os seus conhecimentos, que não possuem qualquer experiência de relação com a juventude e cuja única atitude face à educação é a de propagandistas. Nestas circunstâncias, não é fácil ver de que modo os professores podem cumprir as funções para que estão especialmente votados.

É óbvio que a educação estatal é necessária, mas é igualmente óbvio que acarreta perigos contra os quais importa estar precavido. Na Alemanha nazista e ainda hoje na Rússia, é possível constatar a presença desses perigos em toda a sua magnitude. Em situações deste tipo, só pode ensinar quem subscreva uma crença dogmática, ou seja, uma daquelas concessões que poucas pessoas de espírito livre estão voluntariamente dispostas a aceitar. Além disso, muitas vezes não basta subscrever uma crença. É também necessário ser complacente para com atos abomináveis e abster-se cautelosamente de manifestar as suas opiniões sobre acontecimentos vulgares. Enquanto o ensino se reduz ao alfabeto e à tabuada, matérias que não são suscetíveis de controvérsia, os dogmas oficiais não produzem necessariamente uma deformação da instrução. Mesmo assim, nos países totalitários, espera-se que o professor, ao ensinar essas matérias, não utilize os métodos que lhe pareçam mais ajustados para alcançar os resultados escolares pretendidos, mas que inculque nos seus alunos medo, subserviência, obediência acrítica, exigindo-lhes uma indiscutível submissão à sua autoridade. E, quando se ultrapassa o nível elementar, então o professor é obrigado a adaptar a perspectiva oficial em todas as questões controversas.

E por esta rao que na Alemanha nazista, e ainda hoje na Rússia, os jovens foram transformados em fanáticos intolerantes, ignorantes relativamente ao mundo exterior ao seu próprio país, totalmente desacostumados de uma discussão livre e incapazes de aceitar que as suas opiniões possam ser postas em causa sem que seja por efeito de um espirito mavolo

À pesar de muito mau este estado de coisas seria menos desastroso e, como acontecia com o catolicismo medieval, os dogmas incutidos fossem universais e internacionais. Mas o dogmatismo moderno, que na Alemanha prega um credo, na Itália outro, na Rússia outro e outro ainda no Japão, recusa qualquer concepção de uma cultura internacional. O que mais ressalta no ensino ministrado aos jovens em cada um destes países é o nacionalismo fanático. Daí resulta que as pessoas de um país não têm qualquer base de entendimento com as de outro e não existe nenhuma ideia de comunidade civilizacional suscetível de se opor a esta ferocidade belicosa.

A decadência do internacionalismo cultural tem sido verificada de forma cada vez mais acentuada desde a Primeira Guerra Mundial. Quando estive em Leninegrado (atual São Petersburgo) em 1920, tive um encontro com um professor de Matetica Pura, que conhecia bem cidades como Londres, Paris e outras capitais e que era membro de vários congressos internacionais. Hoje em dia, só raramente são permitidas saídas deste género aos homens de cultura da Rússia. As autoridades receiam que eles façam comparações desfavoráveis com o seu próprio país. Embora menos extremo nos outros pses, a verdade é que o nacionalismo no ensino é hoje muito mais poderoso do que era antes. Por exemplo, na Inglaterra e, segundo creio, também nos Estados Unidos verifica-se uma tendência no sentido de entregar o ensino do francês ou do alemão a pessoas de nacionalidade francesa e alemã. Ora, este tipo de prática, que consiste em dar maior importância à nacionalidade do que à competência, na escolha de alguém para o exercício de uma determinada fuão, é prejudicial à educação e constitui uma afronta ao ideal de uma cultura universal. Esse ideal constitui uma herança que nos foi legado pelo Império Romano e pela Igreja Calica e que está hoje ficando submerso sob uma nova invasão bárbara procedente, desta vez, não do exterior, mas do interior.

 Nos países democráticos, estes males não atingiram ainda proporções comparáveis a estas. Mas temos que admitir que existe um perigo real de que se venham a manifestar desenvolvimentos semelhantes. Ora, esse perigo só poderá ser evitado se aqueles que acreditam na liberdade de pensamento protegerem a independência intelectual dos professores. E o primeiro requisito necessário é uma clara delimitação das tarefas que se pode legitimamente esperar que os professores desempenhem em benefício da comunidade.

Estou de acordo com os governos deste mundo quando defendem que uma das funções menores do professor é a transmissão de uma informação não controversa. Trata-se, é certo, de uma fuão que constitui a base a partir da qual todas as outras são construídas e que, indubitavelmente, se reveste de uma utilidade considerável numa civilização cnica como a nossa. Numa comunidade moderna, é indispensável que exista um número suficiente de homens com as capacidades técnicas requeridas para a preservação da aparelhagem mecânica de que depende o nosso conforto material. Além disso, não é aceivel que uma larga percentagem da população não saiba ler nem escrever. Razões pelas quais todos nós somos a favor de uma educação universal obrigatória.

 Mas, ao mesmo tempo, os governos perceberam quão fácil é, no decurso da instrução, inculcar crenças sobre matérias controversas e promover hábitos mentais que podem ou não ser inconvenientes para a sua autoridade. É por essa razão que, nos países civilizados, a defesa do Estado está tanto nas mãos dos professores como nas das forças armadas. Ora, exceto nos países totalitários, a defesa do Estado é algo de desejável e, assim sendo, o fato de a educação ser utilizada para esse fim não constitui, por si só, razão para críticas. A crítica só surge quando o Estado procura defender-se fazendo apelo ao obscurantismo e a paixões irracionais, métodos inteiramente desnecessários em qualquer Estado digno de defesa. No entanto, há uma tendência natural para a adoção desses métodos por parte daqueles que não têm conhecimento direto dos problemas da educação. Acredita-se com frequência que as nações se tornam mais fortes com a uniformidade de opinião e a supressão da liberdade. Do mesmo modo, ouve-se muitas vezes dizer que a democracia torna mais fraco um país em guerra, se bem que, em todas as guerras importantes desde 1700 para cá, a vitória tenha ido sempre parar às mãos do lado mais democrático. Na maior parte das vezes, a ruína das nações se deve, mais à insistência numa uniformidade doutrinal acanhada, do que à livre discussão e à tolerância de opiniões divergentes. Em suma, os dogmáticos do mundo inteiro acham que, embora eles próprios sejam capazes de conhecer a verdade, os outros, se lhes fosse permitido ouvir os argumentos de ambas as partes, seriam levados a cair em falsas crenças. Trata-se de uma posição que conduz a uma de duas desgraças: ou há um grupo de dogmáticos que conquista o mundo e proíbe todas as ideias novas, ou, o que é pior ainda, grupos rivais conquistam regiões diferentes e pregam o evangelho do ódio uns contra outros. Na Idade Média verificou-se o primeiro destes males; durante as guerras religiosas, e de novo nos nossos dias, vigorou o último. O primeiro, faz com que uma civilização se torne estática; o segundo, tende a destruí-la completamente. Cabe ao professor ser a salva guarda principal contra ambos.

Sabemos que o espírito partidário constitui um dos maiores perigos do nosso tempo. Sob forma de nacionalismo, conduz à guerra entre nações; sob outras formas, leva à guerra civil. Aos professores cabe manter-se fora da luta entre os partidos, procurando fomentar nos jovens hábitos de investigação imparcial, levando-os a julgar as questões pelos seus próprios méritos, e estarem prevenidos contra afirmações ex parte, aceitos apenas pelo seu valor aparente. Não é legítimo esperar que o professor elogie os preconceitos defendidos quer pelas massas, quer pela alta magistratura. A virtude profissional do professor deveria consistir em julgar com isenção todas as partes, num esforço para se elevar acima de toda a controvérsia, para se manter num nível de investigação desapaixonada e científica e, se alguém considera inconveniente os resultados dessa investigação, deveria o professor ser protegido contra a má vontade das pessoas, a menos que se provasse que se entregava a uma propaganda desonesta pela disseminação de juízos cuja falsidade podia ser objeto de demonstração.

Contudo, a função do professor não é meramente a de mitigar o ardor das controvérsias em curso na sua época. Ele tem tarefas mais positivas e não poderá ser um grande professor se não estiver inspirado pelo desejo de as cumprir. Mais do que ninguém, os professores são os guardiões da civilização. Devem por isso estar intimamente conscientes do que esta é e empenhados em comunicar aos seus alunos uma atitude civilizada de respeito para com ela. Somos assim conduzidos à seguinte questão: o que constitui uma comunidade civilizada?

Questão a que se dará uma resposta muito banal se nos ativermos apenas aos aspectos materiais da civilização. Um país é civilizado se tiver muitas máquinas, muitos automóveis, muitas casas de banho e uma grande rede de rápidos meios de locomoção, coisas a que, em minha opinião, a maioria dos homens modernos atribui demasiada importância. Em sentido mais profundo, a civilização é de ordem espiritual e não um conjunto de auxiliares materiais da componente física da vida, uma questão em parte de conhecimento e em parte de emoção. No que diz respeito ao conhecimento, o homem civilizado deverá ter consciência da sua própria insignificância e do seu meio mais próximo em relação ao mundo, tanto em termos temporais como espaciais. Deverá ver o seu próprio país, não a penas como a sua casa, mas como um país entre os outros países, todos eles com igual direito a viver, pensar e sentir. Deverá ser capaz de situar a sua própria época em relação ao passado e ao futuro, ter consciência de que as controvérsias que hoje o rodeiam parecerão tão estranhas às gerações futuras como as do passado nos parecem agora a nós. Numa perspectiva ainda mais ampla, deverá tomar consciência da vastidão das eras geológicas e das abissais distâncias astronómicas. Porém, a consciência de tudo isto não deverá funcionar como um peso capaz de esmagar o homem individual, mas, ao invés, como um vasto panorama que alarga o espírito de quem o contempla. Do lado das emoções, para que o homem seja verdadeiramente civilizado, é necessário que a sua perspectiva puramente pessoal sofra um alargamento semelhante. Os homens percorrem o caminho que vai do nascimento à morte, umas vezes felizes, outras infelizes; umas vezes generosos, outras gananciosos e mesquinhos; por vezes heroicos, outras covardes e servis. Quando se observa este cortejo como um todo, sobressaem alguns homens dignos de admiração. Uns foram inspirados pelo amor da humanidade, outros ajudaram-nos com a sua superioridade intelectual a compreender o mundo em que vivemos, outros ainda, mercê de uma excepcional sensibilidade criaram beleza. Esses homens fizeram algo de positivamente bom, capaz de ultrapassar a longa lista de crueldade, opressão e superstições. Fizeram tudo o que estava ao seu alcance para transformar a vida humana em algo mais do que uma breve turbulência de selvagens. O homem civilizado é aquele que, quando não pode admirar, aspira mais a compreender do que a reprovar. Nesse sentido, procura mais descobrir e remover as causas impessoais do mal do que odiar quem se encontra preso nas suas garras. Tudo isto deve fazer parte do espírito e do coração do professor, pois que, se assim for, tudo isso será transmitido durante o ensino aos jovens que estão sob o cuidado desse professor.

Ninguém pode ser bom professor sem o sentimento de uma calorosa afeição pelos seus alunos e sem o desejo genuíno de partilhar com eles aquilo que, para si próprio, é um valor. Não há aqui qualquer semelhança com a atitude do propagandista. Para o propagandista, os alunos são soldados potenciais de um exército. Estão destinados a obedecer a objetivos exteriores às suas próprias vidas, não no sentido em que qualquer propósito generoso transcende o próprio eu, mas no sentido em que deverão constituir-se como auxiliares na luta contra privilégios injustos ou poderes despóticos. O propagandista não pretende que os seus alunos observem o mundo por sua própria conta, que escolham livremente um objetivo que lhes pareça válido. Como um bom podador, o que o propagandista deseja é exercitar e orientar o desenvolvimento dos seus alunos de forma a poder submetê-los aos propósitos do jardineiro. Ao orientar as tendências naturais dos seus alunos, o propagandista torna-se apto a destruir neles todo o vigor generoso, substituindo-o pela inveja, pelo espírito de destruição e pela crueldade. Ora, não há qualquer necessidade de ser cruel. Estou mesmo persuadido de que, em grande medida, a crueldade é resultante da repressão na infância, principalmente da repressão daquilo que é bom.

Como a atual situação do mundo permite provar, as paixões repressivas e persecutórias são hoje muito vulgares. Mas isso não significa que constituam uma parte necessária da natureza humana. Pelo contrário, elas são sempre, segundo creio, resultado de uma infelicidade. Uma das funções do professor deveria ser a de abrir novas perspectivas aos seus alunos, dando-lhes a conhecer as possibilidades de realização de atividades simultaneamente agradáveis e úteis. Assim se proporcionaria a libertação dos impulsos bondosos e se impediria o desenvolvimento do desejo de retirar aos outros as alegrias que nos faltam a nós. Para muitos, a felicidade não é um fim, nem para si, nem para os outros. Mas é lícito suspeitar que tais pessoas são meros frutos amargos. Uma coisa é renunciar à felicidade pessoal a favor de uma finalidade publica; outra, muito diferente, é tratar a felicidade geral como irrelevante. E, no entanto, é muitas vezes isso mesmo que é feito em nome de um suposto heroísmo. Em geral, naqueles que adotam esta atitude, há uma espécie de veio de crueldade, provavelmente fundado numa inveja inconsciente cuja fonte poderia ser encontrada na sua infância ou juventude. O educador deveria ter por objetivo preparar adultos isentos destes infortúnios psicológicos, pessoas que não estivessem desejosas de privar os outros da felicidade de que elas próprias foram privadas.

Tal como as coisas hoje se apresentam, muitos professores estão longe de dar o seu melhor. Há inúmeras razões para este fato, umas mais ou menos acidentais, outras profundamente enraizadas. Começando pelas primeiras: a maior parte dos professores estão de tal modo sobrecarregados de trabalho que se veem limitados a ter que preparar os alunos para os exames em vez de lhes darem uma formação sem preconceitos. Quem não tem prática de ensino (e isto inclui praticamente todas as autoridades educativas) não faz ideia do dispêndio de energia espiritual que o ensino envolve. Não se espera que os padres façam sermões durante várias horas todos os dias, mas, aos professores, pede-se um esforço análogo. O resultado é que muitos ficam esgotados e nervosos, alheios das obras recentes relativas às matérias que ensinam, incapazes portanto de comunicar aos seus alunos a sensação de prazer intelectual que resulta da conquista de uma nova compreensão e de um novo conhecimento.

No entanto, não é esta de forma alguma a questão mais grave. Na maior parte dos países, há determinadas opiniões que são consideradas corretas e outras perigosas. Aos professores cujas opiniões são consideradas incorretas é exigido silêncio. Se emitem as suas opiniões, dir-se-á que estão a fazer propaganda. Pelo contrário, considera-se que faz parte de uma instrução sadia a referência a opiniões ditas corretas. Da que resulta, com muita frequência, que os jovens mais curiosos, se quiserem perceber aquilo que os espíritos mais vigorosos da sua própria época estão a ensinar, têm que ir procurá-los fora da escola. Nos Estados Unidos, há uma disciplina escolar, chamada Instrução cívica na qual, talvez mais do que em qualquer outra, o ensino tende a ser enganador. Ensina-se aos jovens uma espécie de cartilha acerca do modo como é suposto que os negócios públicos devem ser conduzidos, encobrindo cuidadosamente o modo como, de fato, eles são conduzidos. Quando esses jovens crescem e descobrem a verdade, o que quase sempre acontece é que desenvolvem um completo cinismo no qual se perdem todos os ideais públicos. Se, pelo contrário, a verdade lhes tivesse sido ensinada desde cedo, de forma cuidadosa e acompanhada dos comentários adequados, esses jovens poderiam tornar-se homens capazes de combater males que, tal como as coisas estão, lhes não merecem agora mais do que um complacente encolher de ombros.

A ideia de que a falsidade pode ser edificante é um dos grandes pecados dos responsáveis educativos. Considero impossível que se possa ser um bom professor sem que se tenha tomado a resolução firme de nunca, no decurso do seu magistério, ocultar a verdade em nome do que quer que se considere ser “não edificante”. A ignorância cautelosa produz uma virtude frágil que se perde ao primeiro contato com a realidade. Neste nosso mundo, há muitos homens que merecem admiração e é bom que os jovens aprendam a saber ver as diversas facetas em que esses homens são admiráveis. Em contrapartida, de forma alguma se devem levar os jovens a admirar patifes pela ocultação da sua patifaria. Diz-se vulgarmente que o conhecimento das coisas tal como elas são conduz ao cinismo. Mas o mesmo pode acontecer (então acrescido ainda com um choque de surpresa e horror) se esse conhecimento for repentino. O efeito será outro se o conhecimento da realidade for sendo gradualmente construído, combinado nas devidas proporções com o conhecimento daquilo que é bom, no decurso de um estudo científico inspirado pelo desejo de alcançar a verdade. Em qualquer circunstância, mentir aos jovens (jovens que não dispõem de meios para verificar a verdade do que se lhes diz) é algo de moralmente indefensável.

Se queremos que a democracia sobreviva, aquilo que, acima de tudo, um professor deveria esforçar-se por produzir nos seus alunos é o tipo de tolerância que nasce do desejo de, compreender os que são diferentes de nós. Há, talvez um impulso humano natural para olhar com horror e aversão usos e costumes diferentes daqueles a que estamos habituados. Também as formigas e os selvagens condenam à morte os estrangeiros e, quem nunca viajou, quer física, quer mentalmente, não consegue tolerar os costumes excêntricos e as crenças estranhas das outras nações e das outras épocas, das outras seitas e dos outros partidos políticos. Este tipo de ignorância intolerante é a antítese da perspectiva civilizada e constitui um dos perigos mais graves a que está exposto o nosso mundo super povoado. O sistema educativo devia ter como projeto a correção deste mal. Mas a verdade é que, presentemente, pouquíssimo é feito nesse sentido. Pelo contrário, o sentimento nacionalista é encorajado em todos os países. Ensinam-se as crianças das escolas (porventura demasiado habituadas a acreditar) que os habitantes dos outros países são moral e intelectualmente inferiores aos do país em que vivem os alunos daquela escola. Ao invés de desencorajar, encoraja-se a histeria coletiva, a mais louca e cruel de todas as emoções humanas, e os jovens são incentivados a acreditar, não naquilo que tem algum fundamento racional, mas simplesmente no que ouvem dizer.

É óbvio que os professores não podem ser censurados por esta situação pois não são livres de ensinar como querem. São eles quem mais intimamente conhece as necessidades dos jovens. São eles que, por intermédio de um contato diário, mais acabam por cuidar dos jovens. Mas não o eles que decidem o que deve ser ensinado ou quais os todos de ensino a adotar. Nesse sentido, a profissão de professor deveria ter muito maior liberdade. Deveria haver mais oportunidade de auto determinação, mais independência face à interferência dos burocratas e dos faticos. Exceto, naturalmente, naqueles  casos em que os médicos se afastem criminosamente do propósito da medicina que é curar os doentes, ningm hoje estaria de acordo que os dicos fossem submetidos ao controle de autoridades o médicas no que diz respeito ao modo como se devem tratar os doentes. Ora, o professor é uma escie de médico cujo propósito é curar o doente da sua infantilidade, mas, em contrapartida, não lhe é permitido decidir por si próprio, e em função da sua própria experiência, quais os métodos mais convenientes para este fim. Algumas grandes universidades históricas, pela foa do seu presgio, têm assegurado uma autodeterminão virtual. Mas a imensa maioria das instituições educativas são controladas por pessoas que não compreendem nada do trabalho em que interferem. Ora, a única maneira de evitar o totalitarismo num mundo altamente organizado como o nosso é garantir um certo grau de independência aos elementos que executam trabalho público útil e, entre esses elementos, os professores merecem um lugar de destaque.

Como o artista, o filósofo e o homem das letras, o professor só pode realizar o seu trabalho adequadamente se se sentir um indivíduo dirigido por um impulso criador interno e se não estiver dominado e acorrentado por uma autoridade exterior. No mundo moderno, é muito difícil encontrar espaço para o indivíduo. Ele só pode subsistir se ocupar o ponto mais elevado, se for ditador de um Estado totalitário ou magnata plutoctico num país de grandes empreendimentos industriais. Porém, no reino do esrito, torna-se cada vez mais difícil preservar a independência face às grandes forças organizadas que controlam a existência dos homens e das mulheres. Mas, se não queremos que o mundo perca os benefícios que derivam da contribuição dos seus melhores espíritos, terá que ser encontrado um método qualquer que, lhes garanta margem de manobra e liberdade para lá das forças organizadas. Isto implica um retraimento deliberado por parte daqueles que detêm o poder e uma compreensão conscienciosa de que é necessário dar, a alguns homens, grande liberdade de ação. Os papas da Renascença foram capazes de atuar desse modo para com os artistas da Renascença. Mas os poderosos de hoje parecem ter grande dificuldade em respeitar as criaturas dotadas de um talento excepcional. Digamos que a turbulência do nosso tempo é inimiga da fina flor da cultura. O homem da rua está cheio de medo e, portanto, não tem vontade de tolerar as liberdades que lhe parecem desnecessárias. E, talvez seja preferível esperar por dia mais tranquilo, antes que as exigências da civilização possam de novo vencer as exigências do espírito partidário. Entretanto, é importante que, pelo menos alguns, possam continuar a compreender os limites de tudo o que é feito pelas forças organizadas. Todos os sistemas deveriam permitir pontos de fuga e exceções. Caso contrário, o que há de melhor no homem acabará por ser esmagado.