As funções de um professor
Bertrand Russell
(1872-1970)
Nos últimos cem
anos, mais do que outros, o
ensino deixou de ser uma profissão de reduzidas dimensões que exigia uma elevada especialização e se dirigia apenas a uma minoria, para se transformar num vasto e
importante ramo do serviço público. Trata-se de uma profissão com uma grande e honrosa
tradição que se estende desde o começo da história até aos nossos dias. No entanto, nos tempos que correm, qualquer professor que
conceda ser impróprio o direito de se sentir inspirado pelos ideais dos seus predecessores, rapidamente se dará conta de que a sua função
já não é ensinar aquilo que considera ser seu
dever ensinar mas incutir crenças e
pressupostos cuja utilidade é estabelecida por aqueles que lhe dão emprego.
Esperava-se outrora que um professor fosse alguém com conhecimento ou sabedoria excepcionais, alguém cujas palavras mereciam ser
escutadas com atenção. Na Antiguidade, quando a profissão não estava ainda instituída,
não era exercido nenhum controle sobre aquilo
que os professores ensinavam. É verdade que com
alguma frequência houve professores que foram punidos pelas suas doutrinas subversivas. Sócrates foi condenado à morte e acredita-se
que Platão foi aprisionado. Mas estes incidentes não interferiram em nada na difusão das suas
doutrinas. Quem possui um genuíno impulso de
professore está mais interessado em sobreviver nos seus livros do que na sua carne. Por outras palavras, o sentimento de independência
intelectual, é essencial ao adequado preenchimento das funções de
professor. A este cabe, fundamentalmente, participar no processo de formação da opinião pública transmitindo todo o
conhecimento e toda a racionalidade de que for
capaz.
Na antiguidade, com exceção de uma ou outra intervenção ocasional mais ou menos abrupta e ineficaz por parte de algum tirano ou multidão, o professor exercia livremente as suas funções. Na Idade Média, o ensino tornou-se prerrogativa exclusiva da Igreja, o
que teve como resultado um progresso menor, quer no plano
intelectual, quer no plano social. Com o Renascimento, o respeito pelo conhecimento atribuiu novamente
ao professor uma liberdade muito significativa. Sem dúvida que a Inquisição obrigou Galileu a retratar-se e condenou Giordano Bruno à fogueira. Mas o trabalho de cada um destes homens já estava feito antes de terem sido punidos.
As instituições de tipo universitário permaneceram em grande
medida sobalçada dos dogmáticos, o que explica que muito do
melhor trabalho intelectual então produzido tenha sido levado a cabo por homens de cultura independentes. Na Inglaterra, quase até o
final do século XIX, praticamente nenhuma figura intelectual
de primeiro plano, com exceção de Newton, esteve ligada
à Universidade. Mas o sistema social estava de tal forma organizado que estas circunstâncias pouco ou nada interferiam nas atividades desses homens e nas aplicações do seu trabalho.
No mundo atual, altamente organizado como é deparamo-nos com um novo problema. Toda a gente recebe algo que se designa por educação,
algo que, geralmente, é dado pelo Estado,
algumas vezes também, pelas Igrejas
existentes. Na grande maioria dos casos, o professor transforma-se então num servidor civil,
obrigado a cumprir ordens de homens
que não tem os seus conhecimentos, que não possuem qualquer experiência de
relação com a juventude e cuja única
atitude face à educação é a de propagandistas.
Nestas circunstâncias, não é fácil ver de que modo os
professores podem cumprir as funções para que estão especialmente
votados.
É óbvio que a educação estatal é necessária,
mas é igualmente óbvio que acarreta perigos contra os quais importa estar precavido. Na Alemanha nazista e
ainda hoje na Rússia, é possível constatar
a presença desses perigos em toda a sua magnitude. Em situações deste tipo, só pode
ensinar quem subscreva uma crença dogmática, ou seja, uma daquelas concessões que poucas pessoas de
espírito livre estão voluntariamente
dispostas a aceitar. Além disso, muitas vezes
não basta subscrever uma crença. É também necessário
ser complacente para com atos abomináveis e abster-se
cautelosamente de manifestar as suas opiniões sobre acontecimentos vulgares. Enquanto
o ensino se reduz ao alfabeto e à
tabuada, matérias que não são suscetíveis de controvérsia, os dogmas oficiais não
produzem necessariamente uma
deformação da instrução. Mesmo assim,
nos países totalitários, espera-se que o professor, ao ensinar essas matérias, não
utilize os métodos que lhe pareçam mais ajustados
para alcançar os resultados escolares pretendidos,
mas que inculque nos seus alunos medo, subserviência,
obediência acrítica, exigindo-lhes uma indiscutível
submissão à sua autoridade. E, quando se ultrapassa o nível elementar, então o professor é obrigado
a adaptar a perspectiva oficial em todas as questões controversas.
E por esta razão que na Alemanha nazista, e ainda hoje na Rússia, os jovens foram
transformados em fanáticos intolerantes, ignorantes relativamente ao mundo exterior ao seu próprio país, totalmente desacostumados
de uma discussão livre e incapazes de aceitar que as suas opiniões possam ser postas em causa sem que seja
por efeito de um espirito
malévolo
À pesar de muito mau este estado de coisas seria menos desastroso e, como acontecia com o catolicismo medieval, os dogmas
incutidos fossem universais e internacionais. Mas o dogmatismo moderno, que na Alemanha
prega um credo, na Itália outro, na Rússia outro e outro ainda no Japão, recusa qualquer
concepção de uma cultura internacional. O que mais ressalta no ensino ministrado aos jovens em cada um destes países é o nacionalismo fanático. Daí resulta que as pessoas de um país não
têm qualquer base de entendimento com as de outro e não existe nenhuma ideia de comunidade civilizacional suscetível de se opor a esta ferocidade belicosa.
A decadência do internacionalismo cultural tem sido verificada de forma cada vez mais acentuada desde a Primeira Guerra Mundial. Quando estive
em Leninegrado (atual
São Petersburgo) em 1920, tive um encontro com um professor de Matemática Pura, que conhecia bem cidades como Londres, Paris e outras capitais e que era membro de vários congressos internacionais. Hoje em dia, só raramente são permitidas saídas deste género aos homens
de cultura da Rússia. As autoridades receiam que
eles façam comparações desfavoráveis com o seu próprio país. Embora menos extremo nos outros países, a verdade é que o nacionalismo no ensino é hoje muito mais poderoso do que era antes. Por exemplo, na Inglaterra e, segundo creio,
também nos Estados Unidos verifica-se uma tendência no sentido de entregar o ensino do francês ou do alemão a pessoas de
nacionalidade francesa e alemã. Ora, este tipo de prática, que consiste em dar maior importância à nacionalidade do que à competência, na escolha de alguém para o exercício de uma determinada função, é prejudicial à educação e constitui uma afronta ao ideal de uma cultura universal. Esse ideal constitui uma herança que nos foi legado
pelo Império Romano e pela Igreja Católica e que está hoje ficando submerso sob uma nova invasão bárbara procedente, desta vez, não do exterior, mas do interior.
Nos países democráticos, estes males não
atingiram ainda proporções comparáveis a estas. Mas temos que admitir que existe um perigo real de que se venham a manifestar desenvolvimentos semelhantes.
Ora, esse perigo só poderá ser evitado se aqueles que acreditam na liberdade de pensamento protegerem
a independência intelectual dos professores. E o primeiro requisito necessário é uma clara delimitação das tarefas que se pode legitimamente esperar que os professores desempenhem em benefício da comunidade.
Estou de acordo com os governos deste mundo quando defendem que uma
das funções menores do professor é a transmissão de uma informação não controversa. Trata-se, é certo, de uma função que constitui a base a partir da qual todas as outras são
construídas e que, indubitavelmente, se reveste de uma utilidade considerável numa civilização técnica como a nossa. Numa
comunidade moderna, é indispensável que exista um número suficiente de homens com as capacidades técnicas requeridas para
a preservação da aparelhagem mecânica de que depende o nosso conforto material. Além disso,
não é aceitável que uma larga percentagem da população não saiba ler nem escrever.
Razões pelas quais todos nós somos a favor
de uma educação universal obrigatória.
Mas, ao mesmo tempo, os governos perceberam
quão fácil é, no decurso da instrução, inculcar
crenças sobre matérias controversas e promover hábitos mentais que podem ou não ser inconvenientes para a sua autoridade.
É por essa razão que, nos países civilizados, a defesa do Estado está tanto nas mãos dos professores como nas
das forças armadas. Ora, exceto nos
países totalitários, a defesa do Estado
é algo de desejável e, assim sendo, o fato de a educação ser utilizada para esse fim não constitui,
por si só, razão para críticas. A crítica só surge quando o Estado procura defender-se
fazendo apelo ao obscurantismo e a paixões
irracionais, métodos inteiramente desnecessários em qualquer Estado digno de defesa. No entanto,
há uma tendência natural para
a adoção desses métodos por parte daqueles
que não têm conhecimento direto dos problemas da educação.
Acredita-se com frequência que as nações se tornam
mais fortes com a uniformidade de opinião e a supressão
da liberdade. Do mesmo modo, ouve-se muitas vezes dizer
que a democracia torna mais fraco um país em guerra,
se bem que, em todas as guerras importantes desde 1700 para cá, a vitória tenha ido sempre
parar às mãos do lado mais democrático. Na maior parte das vezes, a ruína das nações se deve, mais à insistência numa
uniformidade doutrinal acanhada, do que à livre discussão e à tolerância de opiniões divergentes. Em suma,
os dogmáticos do mundo inteiro acham
que, embora eles próprios sejam capazes
de conhecer a verdade, os outros, se lhes fosse permitido ouvir os argumentos de ambas as partes,
seriam levados a cair em falsas
crenças. Trata-se de uma posição que conduz a uma de duas desgraças: ou há um grupo
de dogmáticos que conquista o mundo e proíbe
todas as ideias novas, ou, o que é pior
ainda, grupos rivais conquistam regiões diferentes e pregam o evangelho do ódio
uns contra outros. Na Idade Média
verificou-se o primeiro destes males;
durante as guerras religiosas, e de novo nos nossos dias, vigorou o último. O primeiro, faz
com que uma civilização se torne estática;
o segundo, tende a destruí-la completamente. Cabe
ao professor ser a salva guarda principal
contra ambos.
Sabemos que o espírito
partidário constitui um dos maiores perigos do nosso
tempo. Sob forma de nacionalismo, conduz à guerra
entre nações; sob outras formas, leva à guerra civil. Aos professores cabe manter-se
fora da luta entre os partidos, procurando
fomentar nos jovens hábitos de investigação imparcial, levando-os a julgar as questões
pelos seus próprios méritos, e estarem prevenidos
contra afirmações ex parte, aceitos apenas pelo seu valor aparente. Não é legítimo esperar que o professor elogie os
preconceitos defendidos quer pelas massas,
quer pela alta magistratura. A virtude profissional do professor deveria consistir em julgar com isenção todas as partes, num esforço
para se elevar acima de toda a controvérsia,
para se manter num nível de investigação
desapaixonada e científica e, se alguém
considera inconveniente os resultados dessa investigação, deveria o professor ser protegido contra a má vontade das pessoas, a menos que se provasse que se
entregava a uma propaganda desonesta pela
disseminação de juízos cuja falsidade podia ser objeto de demonstração.
Contudo, a função do
professor não é meramente a de mitigar
o ardor das controvérsias em curso na sua época. Ele tem tarefas mais positivas
e não poderá ser um grande professor se não estiver inspirado pelo desejo de as
cumprir. Mais do que ninguém, os professores
são os guardiões da civilização. Devem
por isso estar intimamente conscientes
do que esta é e empenhados em comunicar aos seus alunos uma atitude civilizada de
respeito para com ela. Somos assim conduzidos à seguinte questão: o que constitui
uma comunidade civilizada?
Questão a que se dará
uma resposta muito banal se nos ativermos
apenas aos aspectos materiais da civilização. Um país é civilizado se tiver muitas
máquinas, muitos automóveis, muitas
casas de banho e uma grande rede de rápidos meios de locomoção, coisas a que, em minha opinião, a maioria dos homens modernos atribui demasiada importância. Em sentido mais profundo, a civilização é de
ordem espiritual e não um conjunto de auxiliares materiais da componente física da vida, uma questão em parte de conhecimento e em parte de emoção. No que diz respeito ao
conhecimento, o homem civilizado deverá
ter consciência da sua própria insignificância
e do seu meio mais próximo em relação ao mundo, tanto em termos temporais como espaciais.
Deverá ver o seu próprio país, não a penas como a sua casa, mas como um país entre os outros países, todos eles com igual direito a viver, pensar e sentir. Deverá
ser capaz de situar a sua própria época
em relação ao passado e ao futuro, ter
consciência de que as controvérsias que hoje o rodeiam parecerão tão estranhas às gerações futuras como as do passado nos parecem agora a nós. Numa perspectiva
ainda mais ampla, deverá tomar consciência
da vastidão das eras geológicas e das
abissais distâncias astronómicas. Porém,
a consciência de tudo isto não deverá funcionar como um peso capaz de esmagar o
homem individual, mas, ao invés, como
um vasto panorama que alarga o espírito de quem o contempla. Do lado das emoções,
para que o homem seja verdadeiramente
civilizado, é necessário que a sua perspectiva puramente pessoal sofra um alargamento
semelhante. Os homens percorrem o caminho
que vai do nascimento à morte, umas vezes
felizes, outras infelizes; umas vezes generosos, outras gananciosos e mesquinhos;
por vezes heroicos, outras covardes e
servis. Quando se observa este cortejo
como um todo, sobressaem alguns homens
dignos de admiração. Uns foram inspirados pelo amor da humanidade, outros ajudaram-nos com a sua superioridade intelectual
a compreender o mundo em que vivemos,
outros ainda, mercê de uma excepcional sensibilidade criaram beleza. Esses homens fizeram algo de positivamente bom, capaz de ultrapassar a longa lista de crueldade,
opressão e superstições. Fizeram tudo
o que estava ao seu alcance para transformar
a vida humana em algo mais do que uma
breve turbulência de selvagens. O homem civilizado é aquele que, quando não pode
admirar, aspira mais a compreender do
que a reprovar. Nesse sentido, procura mais descobrir e remover as causas impessoais
do mal do que odiar quem se encontra
preso nas suas garras. Tudo isto deve
fazer parte do espírito e do coração do professor, pois que, se assim for, tudo isso será transmitido
durante o ensino aos jovens que estão sob o cuidado desse professor.
Ninguém pode ser bom
professor sem o sentimento de uma calorosa afeição
pelos seus alunos e sem o desejo genuíno
de partilhar com eles aquilo que, para si próprio, é um valor. Não há aqui qualquer semelhança
com a atitude do propagandista. Para
o propagandista, os alunos são soldados
potenciais de um exército. Estão destinados a obedecer
a objetivos exteriores às suas próprias vidas, não no sentido em que qualquer propósito generoso
transcende o próprio eu, mas no sentido
em que deverão constituir-se como auxiliares na luta
contra privilégios injustos ou poderes
despóticos. O propagandista não pretende que os seus
alunos observem o mundo por sua própria conta, que escolham livremente um objetivo que lhes
pareça válido. Como um bom podador,
o que o propagandista deseja é exercitar
e orientar o desenvolvimento dos seus alunos de forma a poder submetê-los aos propósitos
do jardineiro. Ao orientar as tendências naturais dos seus alunos, o propagandista torna-se apto a destruir neles
todo o vigor generoso, substituindo-o
pela inveja, pelo espírito de destruição e
pela crueldade. Ora, não há qualquer necessidade de ser cruel. Estou mesmo
persuadido de que, em grande medida, a crueldade é resultante da repressão na infância,
principalmente da repressão daquilo que
é bom.
Como a atual situação
do mundo permite provar, as paixões
repressivas e persecutórias são hoje muito vulgares. Mas isso não significa que
constituam uma parte necessária da natureza humana.
Pelo contrário, elas são sempre, segundo creio, resultado de uma infelicidade. Uma
das funções do professor deveria ser a de abrir
novas perspectivas aos seus alunos, dando-lhes a conhecer as possibilidades de realização de atividades simultaneamente
agradáveis e úteis. Assim se proporcionaria
a libertação dos impulsos bondosos e
se impediria o desenvolvimento do desejo
de retirar aos outros as alegrias que nos faltam a nós. Para muitos, a felicidade
não é um fim, nem para si, nem para os outros.
Mas é lícito suspeitar que tais pessoas são meros frutos amargos. Uma coisa é renunciar
à felicidade pessoal a
favor de uma finalidade publica; outra, muito diferente,
é tratar a felicidade geral como irrelevante. E, no entanto,
é muitas vezes isso mesmo que é feito em nome de
um suposto heroísmo. Em geral, naqueles que adotam esta atitude, há uma espécie
de veio de crueldade, provavelmente fundado numa inveja inconsciente cuja fonte
poderia ser encontrada na sua infância ou
juventude. O educador deveria ter
por objetivo preparar adultos isentos destes
infortúnios psicológicos, pessoas que não estivessem desejosas de privar os outros
da felicidade de que elas próprias foram privadas.
Tal como as coisas hoje
se apresentam, muitos professores estão longe de dar
o seu melhor. Há inúmeras razões para
este fato, umas mais ou menos acidentais, outras profundamente enraizadas. Começando pelas primeiras:
a maior parte dos professores estão de tal
modo sobrecarregados de trabalho que
se veem limitados a ter que preparar os alunos
para os exames em vez de lhes darem uma formação
sem preconceitos. Quem não tem prática de ensino (e isto inclui praticamente todas as autoridades
educativas) não faz ideia do dispêndio de energia espiritual que o ensino envolve.
Não se espera que os padres façam sermões
durante várias horas todos os dias, mas, aos professores, pede-se um esforço análogo.
O resultado é que muitos ficam esgotados e nervosos, alheios das obras recentes
relativas às matérias que ensinam, incapazes portanto de comunicar aos seus alunos a sensação de
prazer intelectual que resulta da conquista
de uma nova compreensão e de um novo conhecimento.
No entanto, não é esta
de forma alguma a questão mais grave.
Na maior parte dos países, há determinadas opiniões que são consideradas corretas
e outras perigosas. Aos professores cujas opiniões são consideradas incorretas é
exigido silêncio. Se emitem as suas opiniões,
dir-se-á que estão a fazer propaganda. Pelo contrário, considera-se que faz parte
de uma instrução sadia a referência a opiniões ditas corretas. Da que resulta, com
muita frequência, que os jovens mais curiosos, se quiserem perceber aquilo que os
espíritos mais vigorosos da sua própria época estão a ensinar, têm que ir procurá-los fora da escola.
Nos Estados Unidos, há uma disciplina
escolar, chamada Instrução cívica na qual, talvez mais do que em qualquer
outra, o ensino tende a ser enganador. Ensina-se aos jovens uma espécie de cartilha
acerca do modo como é suposto que
os negócios públicos devem ser conduzidos,
encobrindo cuidadosamente o modo como, de fato,
eles são conduzidos. Quando esses jovens crescem e descobrem
a verdade, o que quase sempre acontece é que
desenvolvem um completo cinismo no qual se perdem todos os ideais públicos.
Se, pelo contrário, a verdade lhes tivesse sido
ensinada desde cedo, de forma cuidadosa e
acompanhada dos comentários adequados, esses jovens
poderiam tornar-se homens capazes de combater males que,
tal como as coisas estão, lhes não merecem agora mais
do que um complacente encolher de ombros.
A ideia de que a falsidade
pode ser edificante é um dos grandes pecados dos
responsáveis educativos. Considero impossível
que se possa ser um bom professor sem que se tenha
tomado a resolução firme de nunca, no decurso do seu magistério,
ocultar a verdade em nome do que quer que se considere
ser “não edificante”. A ignorância cautelosa produz
uma virtude frágil que se perde ao primeiro contato
com a realidade. Neste nosso mundo, há muitos homens
que merecem admiração e é bom que os jovens aprendam
a saber ver as diversas facetas em que esses homens
são admiráveis. Em contrapartida, de forma alguma se devem levar os jovens a admirar patifes
pela ocultação da sua patifaria. Diz-se
vulgarmente que o conhecimento das coisas
tal como elas são conduz ao cinismo. Mas o mesmo
pode acontecer (então acrescido ainda com um choque
de surpresa e horror) se esse conhecimento for repentino.
O efeito será outro se o conhecimento da realidade
for sendo gradualmente construído, combinado nas devidas
proporções com o conhecimento daquilo que é bom, no decurso de um estudo científico
inspirado pelo desejo de alcançar a
verdade. Em qualquer circunstância, mentir
aos jovens (jovens que não dispõem
de meios para verificar a verdade
do que se lhes diz) é algo de moralmente indefensável.
Se queremos que a democracia
sobreviva, aquilo que, acima de tudo, um professor deveria esforçar-se por produzir nos seus alunos é o tipo de tolerância
que nasce do desejo de, compreender
os que são diferentes de nós. Há, talvez um impulso humano natural para olhar com
horror e aversão usos e costumes
diferentes daqueles a que estamos habituados. Também as formigas e os selvagens
condenam à morte os estrangeiros
e, quem nunca viajou, quer física, quer
mentalmente, não consegue tolerar os costumes excêntricos e as crenças estranhas
das outras nações e das outras épocas, das outras
seitas e dos outros partidos políticos.
Este tipo de ignorância intolerante é a antítese da perspectiva civilizada e constitui
um dos perigos mais graves a que está exposto o nosso mundo super povoado. O sistema
educativo devia ter como projeto a correção deste mal. Mas a verdade é que, presentemente, pouquíssimo
é feito nesse sentido. Pelo
contrário, o sentimento nacionalista é encorajado
em todos os países. Ensinam-se as crianças das escolas (porventura demasiado habituadas a acreditar) que os habitantes dos outros países são moral e intelectualmente inferiores aos do país em que vivem os alunos daquela escola. Ao invés de desencorajar,
encoraja-se a histeria coletiva, a mais
louca e cruel de todas as emoções humanas,
e os jovens são incentivados a acreditar,
não naquilo que tem algum fundamento racional, mas simplesmente no que ouvem dizer.
É óbvio que os professores
não podem ser censurados por esta situação pois
não são livres de ensinar como querem.
São eles quem mais intimamente conhece as necessidades dos jovens. São eles que,
por intermédio de um contato diário, mais acabam por cuidar dos jovens. Mas não
são eles que decidem o que deve ser ensinado ou quais os métodos de ensino a adotar. Nesse sentido, a profissão de professor deveria ter muito maior
liberdade. Deveria haver mais oportunidade de auto determinação, mais independência face à interferência dos burocratas e dos fanáticos. Exceto, naturalmente, naqueles casos em que os médicos se afastem criminosamente do propósito da medicina que é curar os doentes, ninguém hoje estaria de acordo que os médicos fossem submetidos ao controle de autoridades não médicas no que diz respeito ao modo como
se devem tratar os doentes. Ora, o professor é uma espécie de médico cujo propósito é curar o doente da sua infantilidade, mas, em contrapartida, não lhe é
permitido decidir por si próprio, e em função
da sua própria experiência, quais os métodos mais convenientes para este fim. Algumas grandes universidades históricas, pela força do seu prestígio, têm assegurado uma autodeterminação virtual. Mas a imensa maioria das instituições educativas são controladas por pessoas que não compreendem nada do trabalho em que interferem. Ora,
a única maneira de evitar o totalitarismo
num mundo altamente organizado como o nosso é garantir um certo grau de independência aos elementos que executam trabalho público útil e, entre esses elementos, os professores merecem um lugar de destaque.
Como o artista, o filósofo e o homem das letras, o professor só pode realizar o seu trabalho adequadamente se se sentir um indivíduo dirigido por um impulso
criador interno e se não estiver dominado e acorrentado por uma autoridade exterior. No mundo moderno, é muito difícil encontrar espaço para o indivíduo. Ele só pode subsistir se ocupar o ponto mais elevado, se for ditador de um Estado totalitário ou magnata plutocrático num país de grandes empreendimentos industriais. Porém, no reino do
espírito, torna-se
cada vez mais difícil preservar a independência face
às grandes forças organizadas que controlam a existência dos homens e das mulheres. Mas, se
não queremos que o mundo perca os
benefícios que derivam da contribuição dos seus melhores espíritos, terá que ser
encontrado um método qualquer que,
lhes garanta margem de manobra e liberdade
para lá das forças organizadas. Isto implica um retraimento
deliberado por parte daqueles que detêm o poder e
uma compreensão conscienciosa de que é necessário dar, a alguns homens, grande liberdade
de ação. Os papas da Renascença foram
capazes de atuar desse modo para com os artistas da Renascença. Mas os poderosos
de hoje parecem ter grande dificuldade
em respeitar as criaturas dotadas de um talento excepcional. Digamos que a turbulência do nosso tempo é inimiga da fina
flor da cultura. O homem da rua está cheio
de medo e, portanto, não tem vontade de tolerar
as liberdades que lhe parecem desnecessárias. E, talvez seja preferível esperar
por dia mais tranquilo, antes que as exigências
da civilização possam de novo vencer as exigências do espírito partidário. Entretanto,
é importante que, pelo menos alguns, possam
continuar a compreender os limites de tudo o que é feito pelas forças organizadas. Todos os sistemas deveriam
permitir pontos de fuga e exceções.
Caso contrário, o que há de melhor no homem
acabará por ser esmagado.